Qual o seu autor japonês favorito e por que ele é o Haruki Murakami?
A brincadeira no título já denuncia minha admiração por um dos escritores e tradutores japoneses mais celebrados no mundo todo. Suas obras já foram traduzidas para mais de 50 idiomas e, mesmo no outro lado do mundo, no Brasil, muita gente já ouviu falar e leu livros do autor de 1Q84, Norwegian Wood e Kafka à Beira Mar, só para citar alguns de seus romances mais famosos.
E por que insisto em Haruki Murakami? Primeiro porque depois de suas primeiras páginas já é possível fazer um panorama de como vive ou viveu a sociedade japonesa em determinada época. E entender mais o Japão sempre foi uma constante na minha vida. Depois porque ele consegue descrever com tanta precisão e sinestesia que durante uma aula de Literatura na faculdade em Quioto, mesmo lendo em japonês, eu senti a brisa de verão batendo nos meus cabelos e o sabor do vinho branco gelado que um dos personagens principais de A Morte do Comendador (seu último romance) bebe.
E se ele não é dono e proprietário do melhor primeiro capítulo de um livro tem toda a permissão para ser nas primeiras linhas do primeiro de três volumes do realismo fantástico de 1Q84:
“O rádio do táxi estava sintonizado em FM numa estação de música clássica. Tocava a Sinfonietta de Janáček. Aquela provavelmente não era uma das músicas mais apropriadas para se ouvir num táxi, em pleno congestionamento. O motorista também não parecia estar prestando muita atenção a ela. Como um experiente pescador que, de pé na proa de seu barco, pressente algo ruim ao observar o encontro das correntes marítimas, esse senhor de meia-idade olhava, em silêncio, a fileira de carros à sua frente. Aomame, confortavelmente recostada no banco de trás, escutava a música com os olhos levemente cerrados.Quantas pessoas no mundo seriam capazes de identificar que aquela era a Sinfonietta de Janáček, ouvindo apenas os primeiros acordes? Provavelmente seriam entre “muito poucas” a “quase nenhuma”. Por acaso, Aomame era uma delas.”
E quem entende do assunto concorda comigo: Crônica do Pássaro de Corda é sua obra-prima. Suas 607 páginas dão uma aula de enredo, de como prender o leitor e de construção de personagens. O autor utiliza lembranças de um Japão entre guerras, telefonemas misteriosos após o sumiço de um gato e um poço como reflexão de vida. Leia alguns trechos abaixo:
“(...) Não sinto nenhuma estranheza. Pelo contrário, trabalhando de maneira compenetrada, como uma formiguinha, sinto até que estou me aproximando cada vez mais do meu verdadeiro eu. Como posso dizer, não consigo explicar direito, mas acho que, justamente por não estar pensando em mim, estou me aproximando cada vez mais da minha essência. (...)”
“(...) as pessoas precisam pensar a fundo no sentido da vida justamente porque sabem que vão morrer um dia. Não concorda? Se o ser humano vivesse para sempre, se pudesse manter os hábitos sem problemas, quem pensaria no sentido da vida? Seria algo necessário? E bom, mesmo se fosse necessário, as pessoas deixariam para depois: ‘Ainda temos bastante tempo, vamos pensar nisso mais tarde’. Só que não é assim que acontece. Precisamos pensar nessas questões agora, no presente, porque ninguém está livre de morrer atropelado por um caminhão na tarde de amanhã, ou na manhã de depois de amanhã. (...) Precisamos da morte como combustível para a evolução. (...) Quanto mais forte a presença da morte, mais desesperadamente pensaremos sobre as coisas.”
Murakami ainda é um excelente contista. Meu conto favorito dele, U.F.O in Kushiro, foi inspirado no terremoto de 1995 que destruiu a cidade de Kobe e publicado originalmente em 19 de março de 2001 na revista The New Yorker. A obra traz um resumo de tudo que o autor gosta de nos oferecer: ultrapassar as fronteiras da realidade, sair da zona de conforto e pensar, pensar, pensar até suas histórias pararem de ecoar nas nossas mentes, como o trecho abaixo.
“But the letter his wife had left for him five days after the earthquake was different: “I am never coming back,” she had written, and gone on to explain simply but clearly why she no longer wanted to live with Komura. “The problem is that you never give me anything,” she wrote. “Or, to put it more precisely, you have nothing inside you that you can give me. You are good and kind and handsome, but living with you is like living with a chunk of air. It’s not your fault. There are lots of women who will fall in love with you. But please don’t call me. Just get rid of the stuff I’m leaving behind.”
Páginas da revista The New Yorker com o conto U.F.O In Kushiro. Clique na imagem para ler a história na íntegra (em inglês).
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